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maio 19, 2012

Sob a luz da lamparina


Aos queridos amigos, leitores deste blog, uma linda passagem na vida de outra amiga, professora, flautista, recordando seu passado. Tão bonito... até parece trecho de livro. Daqueles grandes autores, que contam tudo detalhadamente e a gente vai formando as imagens na nossa imaginação. Amei e compartilho com vocês.
"(...) Hoje, quando acordei, senti os novos aromas da casa. Com a chegada do frio ligamos o fogão à lenha e a lareira. A casa toda está com aquele perfume de madeira queimada. E, eles me levaram para os cinco anos de idade. A mesa da casa da preta velha (não sei seu nome e minha mãe não lembra mais, acostumou-se a referir-se a ela assim) em S. Luiz do Paraitinga, com um velho candieiro de querosene, igual ao da foto. Com essa luz eu fui alfabetizada. Com o Caminho Suave e a Cartilha Sodré. Era pouco tempo, no início da noite, pois a dona da casa economizava no querosene. Minha mãe havia reingressado na educação e fomos parar em S.Luiz, hoje tão perto, outrora há 8 horas de S.Paulo. Enquanto ela preparava as aulas para o dia da escolinha rural , me ensinava a ler as letras (há muito eu lia as figuras do Thesouro da Juventude - assim mesmo, com TH, era de Portugal). E também tinha o caderno de caligrafia...a-e-i-o-u, pa-pe-pi-po-pu, a pata nada... Só com o lápis preto. "Não, não coloca na boca menina, isso é veneno. A laçada do l (ele) é maior que o t (tê) e o d (dê)... olha a barriga do g de gato, faz direito...Não aperta que rasga o papel." Do Caminho Suave, a barriga do bebê... o de ôvo, u de unha. Barriga ba. 
Babá lava o bebê. 
Eu vejo a barriga do bebê. 
A lição seguinte era o Cachorro. O rabo ficava empinado, formando a letra C. Ca-co-cu... eu tinha vergonha, mas lia. 
Não tinha montessori 
(Método montessori ou pedagogia Montessoriana)
, não tinha construtivismo, eu não lavava o bebê, vermelho era vermelho, amarelo era amarelo, o céu não era blue, não conheci o Didi que deu o dado para Dudu, não brincava com faca ( a faca era afiada), isto é, nada do que estava escrito estava ligado ao meu universo de fazeres. Demorei uma encarnação para descobrir o que era uma zabumba, apesar do desenho. Mas, aprendi rapidamente, e nunca mais estive só. Letras que libertam... 
Ninguém falava em inclusão, em desenvolvimento de habilidades e competências, em direito da criança e dever da família e do estado (minha mãe sabia dos seus deveres). Ninguém falava em paradigmas para a concepção de projetos para uma educação de qualidade. 
Ninguém falava que a alfabetização tinha de ser norteada pelos XXX princípios éticos, políticos e estéticos. Mas enquanto eu escrevia (sempre no caderno de caligrafia, claro)"Eu me chamo x(xis). Sou uma letra muito interessante" eu ia sim, me desenvolvendo e me preparando para o futuro e para a vida cidadã. 
Quando ela não tinha o que fazer, bordava um tecido de linho, acho que era cambraia, ponto cheio, uma linha branco azulada e acetinada...me fez um vestido muito rodado com aquele tecido. Mais tarde, na década de 60 virou um tubinho... ainda está guardado. As rendas todas aplicadas à mão. Quando achá-lo eu fotografo. 
Ele também tem cheiro de fuligem.

Nunca tinha percebido a força da fumaça e como uma lamparina de querosene foi poderosa..."
por Prof. Lucia Helena M. Silva; amiga querida e apreciadora das músicas do João Gilberto, como eu.
Um beijão!

Um comentário:

Anônimo disse...

Que emoção relê-lo por aqui... chorei. Menina, mais emoção ainda ver o marcador "Mulheres Incríveis". Jurei que os próximos 10 anos, serão os melhores de minha vida. Quero ter vc sempre por perto, dando essa força. Afinal, pessoas que como nós tivemos mestre João por exemplo, só podemos ser cúmplices. Hobalalá!
Lucia Helena